A INVESTIGAÇÃO
DAS RELAÇÕES SAÚDE-TRABALHO, O ESTABELECIMENTO DO NEXO CAUSAL DA DOENÇA COM O
TRABALHO E AS AÇÕES DECORRENTES
O reconhecimento do papel do trabalho na determinação e evolução do
processo saúde-doença dos trabalhadores tem implicações éticas, técnicas e
legais, que se refletem sobre a organização e o provimento de ações de saúde
para esse segmento da população, na rede de serviços de saúde.
O estabelecimento da relação causal ou do nexo entre um determinado
evento de saúde – dano ou doença – individual ou coletivo, potencial ou
instalado, e uma dada condição de trabalho constitui a condição básica para a
implementação das ações de Saúde do Trabalhador nos serviços de saúde. De modo
esquemático, esse processo pode se iniciar pela identificação e controle dos
fatores de risco para a saúde presentes nos ambientes e condições de trabalho
e/ou a partir do diagnóstico, tratamento e prevenção dos danos, lesões ou
doenças provocados pelo trabalho, no indivíduo e no coletivo de trabalhadores.
1) O ADOECIMENTO DOS TRABALHADORES E SUA RELAÇÃO COM O TRABALHO
Os trabalhadores podem adoecer ou morrer por causas relacionadas ao
trabalho, como conseqüência da profissão que exercem ou exerceram, ou pelas
condições adversas em que seu trabalho é ou foi realizado. Assim, o perfil de
adoecimento e morte dos trabalhadores resultará da amalgamação desses fatores,
que podem ser sintetizados em quatro grupos de causas:
- doenças comuns, aparentemente sem qualquer relação com o trabalho;
-doenças comuns (crônico-degenerativas, infecciosas, neoplásicas,
traumáticas, etc.) eventualmente modificadas no aumento da freqüência de sua
ocorrência ou na precocidade de seu surgimento
- doenças comuns que têm o espectro de sua etiologia ampliado ou tornado
mais complexo pelo trabalho.
- agravos à saúde específicos, tipificados pelos acidentes do trabalho e
pelas doenças profissionais.
Os três últimos grupos constituem a família das doenças relacionadas ao
trabalho. A natureza dessa relação é sutilmente distinta em cada grupo.
Classificação proposta por Schiling:
Grupo I: doenças em que
o trabalho é causa necessária. (Ex: intoxicação por chumbo, silicose, doenças
profissionais legalmente reconhecidas.)
Grupo II: doenças em
que o trabalho pode ser um fator de risco. (Ex: doença coronariana, doença do
aparelho locomotor, câncer, varizes de mmii.)
Grupo III: doenças em que o trabalho é provocador de um distúrbio
latente, ou agravador de doença já estabelecida ou preexistente, ou seja,
concausa, tipificadas pelas doenças alérgicas de pele e respiratórias e pelos
distúrbios mentais, em determinados grupos ocupacionais ou profissões.(Ex:
bronquite crônica, dermatite de contato alérgica, asma, doenças mentais.)
O grupo I apresenta uma conceituação legal e sua ocorrência deve ser
notificada. O grupo II e III é formado por doenças de etiologia múltipla ou
causadas por múltiplos fatores de risco, portanto, a caracterização etiológica
ou nexo causal será essencialmente de natureza epidemiológica, pela freqüência
em determinados grupos ocupacionais, por exemplo.
Os fatores de risco, podem ser divididos principalmente em 5 grandes
grupo, são eles:
- FÍSICOS: ruído, vibração, radiação ionizante e não-ionizante,
temperaturas extremas (frio e calor), pressão atmosférica anormal, entre
outros;
- QUÍMICOs: agentes e substâncias químicas, sob a forma líquida, gasosa
ou de partículas e poeiras minerais e vegetais, comuns nos processos de
trabalho (ver a coluna de agentes etiológicos ou fatores de risco na Lista de
Doenças Relacionadas ao Trabalho);
- BIOLÓGICOS: vírus, bactérias, parasitas, geralmente associados ao
trabalho em hospitais, laboratórios e na agricultura e pecuária (ver a coluna
de agentes etiológicos ou fatores de risco na Lista de Doenças Relacionadas ao
Trabalho).
- ERGONÔMICOS E PSICOSSOCIAIS: decorrem da organização e gestão do
trabalho, como, por exemplo: da utilização de equipamentos, máquinas e
mobiliário inadequados, levando a posturas e posições incorretas; locais
adaptados com más condições de iluminação, ventilação e de conforto para os
trabalhadores; trabalho em turnos e noturno; monotonia ou ritmo de trabalho
excessivo, exigências de produtividade, relações de trabalho autoritárias,
falhas no treinamento e supervisão dos trabalhadores, entre outros;
- MECÂNICOS E DE ACIDENTES: ligados à proteção das máquinas, arranjo
físico, ordem e limpeza do ambiente de trabalho, sinalização, rotulagem de
produtos e outros que podem levar a acidentes do trabalho
.
2) RECURSOS E INSTRUMENTOS PARA A INVESTIGAÇÃO DAS RELAÇÕES
SAÚDE-TRABALHO-DOENÇA
No âmbito dos serviços
de saúde, o principal instrumento para a investigação das relações
saúde-trabalho-doença e, portanto, para o diagnóstico correto do dano para a
saúde e da relação etiológica com o trabalho, é representado pela anamnese
ocupacional. A anamnese ocupacional faz parte da entrevista médica, que
compreende a história clínica atual, a investigação sobre os diversos sistemas
ou aparelhos, os antecedentes pessoais e familiares, a história ocupacional,
hábitos e estilo de vida, o exame físico e a propedêutica complementar.
A realização da anamnese ocupacional deve estar incorporada à entrevista
clínica e seguir uma sistematização para que nenhum aspecto relevante seja esquecido,
por meio de algumas perguntas básicas: o que faz? Como faz? Com que produtos e
instrumentos? Quanto faz? Onde? Em que condições? Há quanto tempo? Como se
sente e o que pensa sobre seu trabalho? Conhece outros trabalhadores com
problemas semelhantes aos seus? Assim é possível se ter uma idéia das condições
de trabalho e de suas repercussões sobre a saúde do trabalhador.
Igual importância deve ser dada às ocupações anteriores desempenhadas
pelo trabalhador, particularmente aquelas às quais o trabalhador dedicou mais
tempo ou que envolveram situações de maior risco para a saúde.
3) O ESTABELECIMENTO DA RELAÇÃO CAUSAL ENTRE O DANO OU DOENÇA E O TRABALHO
Segundo Desoille,
Scherrer &Truhaut (1975), a comprovação da relação doença-trabalho deve
basear-se em “argumentos que permitam a sua presunção, sem a existência de
prova absoluta”.
Os questionamentos devem ser específicos para cada trabalhador, sendo a
resposta positiva à maioria das questões apresentadas a seguir auxilia no
estabelecimento de relação etiológica ou nexo causal entre doença e trabalho:
- natureza da exposição: o agente patogênico pode ser identificado pela
história ocupacional e/ou pelas informações colhidas no local de trabalho e/ou
de pessoas familiarizadas com o ambiente ou local de trabalho do trabalhador?
- especificidade da relação causal e a força da associação causal: o
agente patogênico ou o fator de risco pode estar contribuindo
significativamente entre os fatores causais da doença?
- tipo de relação causal com o trabalho: de acordo com a Classificação
de Schilling, o trabalho é considerado causa necessária (Tipo I)? Fator de
risco contributivo de doença de etiologia multicausal (Tipo II)? Fator
desencadeante ou agravante de doença preexistente (Tipo III)? No caso de
doenças relacionadas ao trabalho, do tipo II, as outras causas, não-ocupacionais,
foram devidamente analisadas
e hierarquicamente consideradas em relação às causas de natureza
ocupacional?
- grau ou intensidade da exposição: é compatível com a produção da
doença?
- tempo de exposição: é suficiente para produzir a doença?
- tempo de latência: é suficiente para que a doença se instale e
manifeste?
- registros anteriores: existem registros quanto ao estado anterior de
saúde do trabalhador? Em caso positivo, esses contribuem para o estabelecimento
da relação causal entre o estado atual e o trabalho?
- evidências epidemiológicas: existem evidências epidemiológicas que
reforçam a hipótese de relação
causal entre a doença e o trabalho presente ou pregresso do segurado?
A identificação ou comprovação de efeitos da exposição ocupacional a
fatores ou situações de risco, particularmente em suas fases mais precoces,
pode exigir a realização de exames complementares específicos: toxicológicos,
eletromiográficos, de imagem, clínicos especializados, provas funcionais
respiratórias, audiometria, entre outros. A monitorização biológica de
trabalhadores expostos a substâncias químicas potencialmente lesivas para a
saúde, por meio da realização de exames toxicológicos, é importante para os
procedimentos de vigilância.
Para a comprovação diagnóstica e estabelecimento da relação da doença
com o trabalho, podem ser necessárias informações complementares sobre os
fatores de risco, identificados a partir da entrevista com o paciente. No caso
de trabalhadores empregados, essas informações poderão ser solicitadas ao
empregador, como os registros de estudos e levantamentos ambientais,
qualitativos ou quantitativos, contidos no Programa de Prevenção de Riscos
Ambientais (PPRA), feito por exigência da NR 9, da Portaria/MTb n.º 3.214/1978.
Também podem ser úteis os resultados de avaliações clínicas e laboratoriais
realizadas para o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), em
cumprimento da NR 7, da mesma portaria referida anteriormente, e registros de
fiscalizações realizadas pelo poder público.
Na grande maioria dos casos, o profissional da saúde tem dificuldade
para conseguir as informações necessárias devido ao não cumprimento da
legislação pelo empregador. Nesses casos, o médicos deve aprofundar a sua
curiosidade e identificar os fatores de risco ou causais para a doença. As
principais dificuldades para o estabelecimento do nexo ou da relação
trabalho-doença são:
- ausência ou imprecisão na identificação de fatores de risco e/ou
situações a que o trabalhador está ou esteve exposto, potencialmente lesivas
para sua saúde;
- ausência ou imprecisão na caracterização do potencial de risco da
exposição;
-
conhecimento insuficiente quanto aos efeitos para a saúde associados com a
exposição em questão;
- desconhecimento ou não-valorização de aspectos da história de
exposição e da clínica, já descritos como associados ou sugestivos de doença
ocupacional ou relacionada ao trabalho;
- necessidade de métodos propedêuticos e abordagens por equipes
multiprofissionais, nem sempre disponíveis nos serviços de saúde.
É importante lembrar que, apesar da importância da abordagem
multiprofissional para a atenção à saúde do trabalhador, o estabelecimento da
relação causal ou nexo técnico entre a doença e o trabalho é de
responsabilidade do médico, que deverá estar capacitado para fazê-lo.
4) AÇÕES DECORRENTES DO DIAGNÓSTICO DE UMA DOENÇA OU DANO RELACIONADO AO
TRABALHO
Uma vez estabelecida a
relação causal ou nexo entre a doença e o trabalho desempenhado pelo
trabalhador, o profissional ou a equipe responsável pelo atendimento deverá
assegurar:
- a orientação ao trabalhador e aos seus familiares, quanto ao seu
problema de saúde e os encaminhamentos necessários para a recuperação da saúde
e melhoria da qualidade de vida;
- afastamento do trabalho ou da exposição ocupacional;
- o estabelecimento da terapêutica adequada, incluindo os procedimentos
de reabilitação;
- emissão da CAT para o INSS, responsabilizando-se pelo preenchimento do
Laudo de Exame Médico (LEM);
- notificação à autoridade sanitária de acordo com a legislação.
A decisão quanto ao afastamento do trabalho é difícil, exigindo que
inúmeras variáveis de caráter médico e social sejam consideradas:
- os casos com incapacidade total e/ou temporária devem ser afastados do
trabalho até melhora clínica, ou mudança da função e afastamento da situação de
risco;
- no caso do trabalhador ser mantido em atividade, devem ser
identificadas as alternativas compatíveis com as limitações do paciente e
consideradas sem risco de interferência na evolução de seu quadro de saúde;
- quando o dano apresentado é pequeno, ou existem atividades compatíveis
com as limitações do paciente e consideradas sem risco de agravamento de seu
quadro de saúde, ele pode ser remanejado para outra atividade, em tempo parcial
ou total, de acordo com seu estado de saúde;
- quando houver necessidade de afastar o paciente do trabalho e/ou de
sua atividade habitual, o médico deve emitir relatório justificando as razões
do afastamento, encaminhando-o ao médico da empresa, ou ao responsável pelo
PCMSO. Se houver indícios de exposição de outros trabalhadores, o fato deverá
ser comunicado à empresa e solicitadas providências corretivas.
Atenção especial deve
ser dada à decisão quanto ao retorno ao trabalho. É importante avaliar se a
empresa ou a instituição oferece programa de retorno ao trabalho, com oferta de
atividades compatíveis com a formação e a função do trabalhador, que respeite
suas eventuais limitações em relação ao estágio pré-lesão e prepare colegas e
chefias para apoiar o trabalhador na nova situação, alargando a concepção de
capacidade para o trabalho adotada na empresa, de modo a evitar a exclusão do
trabalhador no seu local de trabalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário